"Está morto: podemos elogiá-lo à vontade", diz o
narrador de O Empréstimo, conto de Machado de Assis. "Tinha um olhar de
lanceta, cortante e agudo". E é assim que o narrados nos faz conhecer o
tabelião Vaz Nunes.
Tomo de empréstimo essas aspas do narrador machadiano para
falar das aspas póstumas dedicadas a Eduardo Campos, que teve a vida
interrompida de forma trágica e prematura em acidente aéreo no fatídico 13 de
agosto.
Eduardo que tinha esse olhar de lanceta, cortante e agudo, o
olhar anfíbio, como diz a matéria de capa da revista Piauí deste mês. Eduardo
que, depois de morto, é coberto de elogios.
Em A morte e a morte de Quincas Berro D’Água, de Jorge
Amado, o narrador diz que “Quando um homem morre, ele se reintegra em sua
respeitabilidade a mais autêntica, ainda que tenha cometido loucuras em sua
vida”.
Referia-se à morte ou às mortes de Joaquim Soares da Cunha,
o Quincas Berro D’Água, um sujeito que se afastara da família para se entregar
à bebida e viver e morrer como um pária social.
Calma, não estou, com essa prosa, querendo comparar as duas
mortes, muito menos relacionar um com o outro, até porque o primeiro é apenas
um ser do plano da ficção e o segundo era uma pessoa de carne e osso.
Além de tudo, ainda que eles estivessem no patamar do real,
sabe-se que Quincas partiu como um velho traste, enquanto Eduardo foi pessoa
ilustrada - deputado, ministro, governador, até candidato a presidente.
O que quero mostrar é como, no noticiário e nos comentários,
numa oficina ou num salão de beleza, um morto, um morto famoso, é logo
transformado em um mito, talvez um deus do seu tempo e do seu mundo.
De acordo com as pesquisas Ibope, Vox Populi e Datafolha,
cerca de 60% dos brasileiros não conheciam Eduardo Campos, e essa era inclusive
uma das justificativas para sua até então baixa performance nas pesquisas.
Mas eis que a morte chega e provoca uma reviravolta, talvez
até milagres. De uma hora para outra, gente que nunca ouvira falar no candidato
do PSB agora o cobre de elogios, todo mundo agora ia votar nele.
Não se pode duvidar da sinceridade do votante que ora se
declara, o que se estranha é não ter havido antes tantos votos declarados como
agora há, no calor da tragédia. O que havia era um movimento inverso - um
ligeiro viés de queda nas pesquisas de intenção de votos.
Neste fatídico dia, o 13 de agosto, quem primeiro me trouxe
a má notícia foi um dos manobristas da escola do meu filho. Às 12h58, assim que
descemos do carro, seu Valtino veio tenso, ansioso, assustado, os olhos de
incredulidade:
- Tá sabendo que Leonardo Campos morreu? - ele falou de um
jeito que parecia se tratar de alguém da escola, talvez um pai de aluno.
- Desculpa, seu Valtino, mas quem é Leonardo Campos?
- O candidato a presidente! Leonardo Campos! O melhor de
todos...
- O senhor quer dizer Eduardo Campos morreu? É isso mesmo?
- É isso. Deu agora no rádio. Eu ia votar nele. Era a nossa
única esperança...
Naquele instante chegavam uns cinco ou seis pais e mães e
todos dizendo que iam votar nele, que ele era o melhor candidato, ele era o
mais preparado, ele era o mais bonito, e agora não tinham opção, ele era a
única esperança...
- Mas como é que esse homem só estava com 8% no Ibope? -
pensei. – Pesquisas compradas, deve ser isso. Pesquisas compradas...
E ainda teve uma matéria no UOL que dizia: "O estivador
Donizete Maguila Júnior, 37, que mora próximo, disse que chorou ao ver o corpo
do político. Ele conta que foi um dos primeiros a chegar ao local".
“Eu iria votar nele. Reconheci o corpo na hora. Era o meu
candidato. Ele passava confiança. Chorei quando vi”, disse Maguila Júnior. Já
em matéria veiculada no site do Jornal do Brasil, Maguila Júnior teria dito o
seguinte:
“O estrondo foi tão forte que as vidraças de casa quebraram
e meu cachorro morreu. Em princípio vi seis corpos. Vi pessoas gritando,
chorando e muito machucadas. Mas logo reconheci o nosso candidato pela cor dos
olhos.”
Não temos como duvidar do estivador quando ele fala das
vidraças quebradas, da morte do cachorro, da sua confiança no candidato, do
voto ora declarado e do choro sincero. Mas que reconheceu o corpo do homem pela
cor dos olhos...
Segundo vimos, os corpos das pessoas que estavam no avião
foram dilacerados, sendo que a identificação só poderá ser feita no Instituto
Médico Legal (IML), por meio de DNA, arcada dentária etc.
Mas ele reconheceu o corpo do seu candidato pela cor dos
olhos...
Bom, eis aí a cobertura de uma tragédia, e com ela as
opiniões antes desconhecidas, as simpatias apenas agora declaradas, os votos
secretos revelados, todas as honras e todas as glórias para o novo herói
nacional.
Num exercício de ficção, fico a imaginar o que estaria o
morto pensando sobre esses elogios, esses votos, esses choros – toda essa
coroação póstuma. Então lembro do defunto-narrador de Memórias Póstumas de Brás
Cubas:
- O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a
virtude logo que pisamos o território da morte; não digo que ele se não estenda
para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós [mortos] é que não se nos dá do
exame nem do julgamento.
Então, longe do olhar da opinião terrena, já indiferente ao
exame e julgamento dos vivos, o morto – neste caso, o vivíssimo Brás Cubas –
conclui dizendo o seguinte: - Senhores vivos, não há nada tão incomensurável
como o desdém dos finados.
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