Ao ler o noticiário sobre delações premiadas, essa briga de cachorro grande, e saber dos codinomes de tantos homens corrompidos, fiz uma viagem ao tempo de criança, no Junco, aquele mundo coberto de apelidos.
Num dia remoto da infância, alguém bateu lá em casa. Um homem de voz rouca chamava por meu pai. Perguntei quem era, enquanto ia abrir a porta. De lá fora, na maior naturalidade do mundo, o homem se anunciou:
- É Todo Feio.
E eu, que ainda não o conhecia, nem de vista nem de chapéu, só vi que era verdade porque ouvi límpida e claramente. E ele, para não deixar a menor dúvida, ainda fez questão de especificar:
- É João Todo Feio.
Abri a porta rindo, e ri ainda mais quando o vi. Foi um riso moleque, mas também solidário. Uma criança via outra, mais velha, banguela. Camisa aberta, como de peito aberto pra vida, o nariz achatado e os beiços e os ombros caídos.
Como não gostar de uma figura tão desprendida, tão desprovida de vaidades? Como não simpatizar com aquele pobre diabo?
De tão humilde que era, não queria entrar. Coveiro nunca é uma visita desejada, ainda mais ele, que andava todo roto, aos trapos e farrapos. Insisti para que entrasse e sentasse. Após muito hesitar, enfim entrou, mas ficou em pé, ali à porta.
O velho Adauto, meu pai, era o administrador do cemitério local. Por isso, naquela e em tantas vezes, eles falariam de velórios, e enterros, e caixões, covas, túmulos, esses assuntos de morte - e eu os ouviria sem que eles me vissem.
Quando fui lá nos fundos e anunciei que um certo João Todo Feio o aguardava na sala, meu pai se contrariou, me passou um pequeno sermão-da-montanha, dizendo que bem-aventurados são aqueles que respeitam e se fazem respeitar.
Pouco adiantou eu dizer que tinha sido ele, o próprio visitante, quem assim se anunciou, com aquelas três palavras - João Todo Feio -, de forma espontânea. O velho Adauto nunca se referia a alguém em termos pejorativos.
Mas o fato é que, bem ou mal aventurado, depois desse dia cultivei alguma amizade com João. Quando não era ele que aparecia lá em casa, era eu que achava um jeito de passar no cemitério e ouvir seus causos impagáveis, que me faziam morrer de rir.
Hoje, passadas duas décadas, João já em outra dimensão, tomo conhecimento, pelo noticiário, que um deputado denunciado por corrupção recebeu, além de propina, o apelido de Todo Feio – o que me fez lembrar do amigo coveiro.
Pelo que se lê, o deputado não se zangou com a denúncia em si, de ter recebido propina. O que o revoltou foi o apelido, talvez por se achar uma beleza, tanto é que tratou logo de publicar uma foto ao lado da filha bonita, loira, malhada.
Mas sua excelência, o deputado, está certo, ainda que por linhas tortuosas - o apelido, aplicado a ele, é indevido. Porque apelido, minha gente, é outra coisa, apelido é um sobrenome. E o que o nobre deputado ganhou, não resta dúvida, foi um codinome. Codinome é código secreto, existe para ocultar a identidade de alguém.
O coveiro, que não matou nem roubou, ele sim, tinha um apelido. Já o deputado, que botou a mão no dinheiro, muito dinheiro, esse ganhou foi um codinome. Além do mais - quem me lembra é o primo Antônio Torres – “comparado com o Todo Feio da Lava Jato, o nosso conterrâneo era um galã”. Era mesmo.
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