O primeiro golpe é o próprio nascimento.
Até porque nele se encerra, em muitas visões, uma espécie de
paralelo com a morte
Dois meses e meio atrás, quando completei 51 anos, tive a ideia de escrever um texto com o título ao lado. Não que fazer 51 anos fosse um golpe maior do que o da passagem para os 50. O motivo era a discussão sobre se o processo de impeachment de Dilma Rousseff era ou não um golpe, debate que sempre pontuava o aspecto jurídico e, jamais, o semântico. À época, a controvérsia me fez refletir sobre as várias acepções da palavra “golpe” e concluir que, em muitos e importantes sentidos, o que ocorria poderia ser chamado assim, ainda que não houvesse uma ruptura constitucional.
A partir desse jogo de acepções, eu exporia uma série de motivos pelos quais pode-se dizer que mesmo a vida, do nascimento ao fim, é um grande golpe constituído por uma sequência caótica de golpes menores. Não lembro por que terminei desistindo do artigo e apenas tomei notas. Mas, num texto posterior, cheguei a expor o esboço de uma teoria semântica de golpe no âmbito político, extrajurídico.
Até que li o último artigo de Elio Gaspari, sob o título “Há golpe”. Ao comentar o fato de o rolo compressor governista no Senado ter tentado impedir a perícia que anulou a tese das pedaladas, Gaspari observa que, se não é golpe à luz da lei, há, no julgamento de Dilma, um golpe “no sentido vocabular”. E cita a definição do Houaiss segundo a qual “golpe” é um “ato pelo qual a pessoa, utilizando-se de práticas ardilosas, obtém proveitos indevidos”. Ou, ainda: “Estratagema, ardil, trama”.
A certeira sacada de Gaspari me animou a retomar aquele texto deixado pelo caminho, e, a partir deste parágrafo, transcrever, com alguma revisão, meus garranchos filosóficos de então. Pensar na vida como um golpe remete à data de meu nascimento: 20 de abril de 1965. A data significa que meus pais me conceberam durante o golpe militar. Meio século após meu nascimento, então, vinha à luz essa discussão inflamada e, na maior parte das vezes, pobre, sobre “se é golpe ou não é”.
O primeiro golpe é o próprio nascimento. Até porque nele se encerra, em muitas visões, uma espécie de paralelo com a morte, considerada por sacerdotes como um nascer para o além. “Morrer deve ser tão frio/quanto na hora do parto”, diz uma de nossas mais belas canções, a mais zen de todas. Não me recordo da hora do parto, mas na certa senti frio, após nove meses no calor do útero. É uma dedução lógica.
E há outro frio: aquele na barriga ou na espinha, ao perceber, mais cedo, mais tarde, onde é que a gente veio parar. Daí a noção freudiana (nada zen) de que o princípio da vida (Eros) coincide com a pulsão de morte (Tanatos): a cada golpe, somos tomados pelo desejo de voltar ao útero — embora não usemos a palavra, mas noções substitutas como “quero sumir”, “não pedi para nascer”, “isso não é vida” ou “estou cansado”. Mesmo que de forma virtual, na falta de um útero ao qual voltar há sempre, no túmulo, um horizonte de repouso e de retorno (à terra, como se diz).
O golpe mais doloroso do período recente foi a partida (concreta) de meu pai para o bonito cemitério de Vilar dos Teles e, imaterialmente, se houver porvir, para algum éter. No dia do enterro, minha mãe lamentou, por sinal, o frio que ele deveria estar sentindo lá embaixo, mas prefiro pensar na direção para a qual apontava a chama da vela: não importa se está de pé ou de cabeça para baixo, o fogo sempre dirige-se ao alto (os rabinos adoram essa metáfora), como se Eros estivesse de prontidão (ou ereção) para vencer a morte. Uma prova agnóstica disso é como a memória mantém vivos os mortos. Até religiosos chamam a evocação de lembranças de quem se foi de “corrente da vida eterna”, deixando acesa a hipótese de que o mundo de lá é o mesmo de cá, e de que tudo, para lá do verbo, é símbolo, noção da qual os indígenas partilham, ou talvez sejamos nós que partilhemos suas noções.
É assim que gosto de pensar também quando um golpe é desferido em minha consciência cívica: alguma chama sempre se elevará, embora isso não garanta nenhum tipo de salvação da pátria, da família ou do indivíduo. Por mais que se discuta, e independentemente de minha opinião ou da de qualquer pessoa ou instituição ou tribunal, não haverá uma “verdade absoluta” sobre nada, como querem muitos analistas pomposos. Cada um diz que “foi ou não foi” de acordo com a acepção que melhor servir a seu argumento, mas todos, de um lado ou outro, pensam que a acepção é uma só.
Esse é um dos maiores golpes que a vida nos impõe e a filosofia tenta solucionar: o sentido do qual cada palavra está carregada jamais é claro, daí estarmos todos imersos numa grande confusão de sentidos. O problema é que nunca dá tempo de corrigir e, mesmo que desse, não haveria concórdia.
A falta de concórdia: outro golpe. No Brasil isso é especialmente notório: todos se acusam, cada qual é um pária, a coisa se reflete no cenário político e, em seguida, volta à sociedade, num ciclo infinito que muitos acreditam levar a uma evolução de viés positivo. Ao 51, sou tentado a descrer deste viés. Acredito que as evoluções com qualquer viés são fugazes e anuladas pelo seu contrário. Como ondas. (todos têm direito de pensar como quiserem, mas a força do que é contrário poderá anular até uma evolução ?)
Nenhum comentário :
Postar um comentário