‘Dilmês, o idioma da
mulher sapiens’
“Dilmês: o idioma da mulher
sapiens”, do jornalista Celso Arnaldo Araújo, acaba de chegar às livrarias já
com jeitão de best seller e cara de clássico. Há muito tempo os leitores da
coluna exigiam que o grande Celso Arnaldo, único PhD em dilmês do planeta,
reunisse num livro os textos antológicos, publicados nesta coluna, inspirados
no estranho dialeto falado pela presidente da República. Ele fez mais que isso.
Reescreveu o que parecia irretocável e conseguiu aperfeiçoar o que parecia
perfeito.
Tive ─ como é mesmo a palavra? ─ uma epifania. Até hoje não sei se
palavra tão solene, geralmente reservada a súbitas descobertas filosóficas,
pensamentos iluminados, revelações de altas manifestações do espírito,
aplica-se realmente ao que senti naquele momento ─ até porque acho que nunca
mais terei uma nova epifania diante de qualquer outro fenômeno. Pensando bem:
só agora sei que tive mesmo uma epifania ao ouvir Dilma falando pela primeira
vez. Lembro bem. Eu estava na cozinha, mais precisamente no fogão, misturando
qualquer coisa. Ao lado da geladeira, a TV de 14 polegadas cumpria sua função
de pano de fundo, sem merecer minha especial atenção. Mas o acaso ─ só pode ser
─ programou o velho aparelho. A voz que então vinha dele, ao longe, introduzia
uma descoberta que, para mim, se transformaria num processo epistemológico ─
para empregar outra palavrinha que só se usa uma vez na vida
Era uma senhora discorrendo sobre
as maravilhas do pré-sal. Só fixei minha atenção e descobri do que ela falava
porque a extraordinária forma daquela fala, que captei sem muito esforço,
conduziu-me automaticamente ao conteúdo. Aí entra e tal epifania ─ o “súbito
entendimento ou compreensão de algo” me fez interromper os trabalhos sobre o
fogão e me concentrar na velha TV, depois de aumentar-lhe o volume no controle
remoto. Então, a coisa começou a fazer sentido. Ou não.
Era um canal do governo, uma
certa TV NBR, especializada em discursos, eventos e entrevistas oficiais para
uma única audiência: o traço. Ganhou a minha atenção, naquele momento. Era
setembro de 2009 ─ um domingo, creio. E uma senhora austera e altiva, de óculos
e tailleur, num tom de voz acima do normal para o contexto, dava uma aula de
PowerPoint de pré-sal a uma plateia de engravatados.
O tema exposto não era de meu
especial interesse ─ o modo de exposição, sim. Aflorava, naquele momento
epifânico, o instinto de quem, como jornalista de revista semanal por quase
trinta anos, habituara-se a ouvir e captar os mais diversos padrões da sintaxe
em língua portuguesa ─ de garranchos vocais a esculturas oratórias. Aquilo era
diferente. Era fora do padrão.
Um ponto fora da curva. Não tenho
a mais vaga lembrança de alguma sentença que tenha me chamado mais a atenção
naquela exposição na TV oficial. Foi o conjunto da obra que impactou. A senhora
do pré-sal dava a impressão de ir buscar seus raciocínios numa camada mais
profunda que a do seu tema no dia ─ e o que vinha à tona não era nada bom.
Aliás, era extraordinário. Frases que começavam, mas não terminavam,
perdendo-se em rodeios desesperantes. Outras que terminavam mal tinham
começado. Palavras que redundavam e se encavalavam, desafiando qualquer
sequência. Enfim, a notável falta de clareza passava a impressão de uma
especialista não especializada no tema que tentava explanar.
A estranheza foi ainda maior
porque, em tese, ela era uma super-expert no assunto. Os créditos na base da
tela da TV identificavam a oradora: Dilma Rousseff, chefe da Casa Civil do
governo L--- e ex-ministra das Minas e Energia. Sim, a mesma Dilma que os
cronistas políticos de Brasília já ventilavam como a candidata de L--- à sua
sucessão ─ depois que a escolha mais natural, José Dirceu, fora alvejada de
morte pelos desdobramentos do mensalão.
O fato é que sai muitíssimo mal
impressionado de meu primeiro encontro com Dilma Rousseff. Concedi, porém, o benefício
da dúvida a quem podia ser nossa primeira presidente mulher: fora um mau dia
dela. Estava nervosa por algum motivo, só podia ser. Algo a perturbara, antes
da palestra, afetando seu discurso. Uma autoridade desse nível, ex-ministra do
pré-sal e de todas as outras energias, e agora uma espécie de chanceler dos
subterrâneos do governo L---, não poderia falar daquele jeito. Não demorou
muito para, ouvindo-a em outros contextos, sobre os mais variados assuntos,
concluir que a Dilma do pré-sal era a da superfície também.
A pré-candidata passou a ter em
mim um fiel seguidor ─ em carne e osso, não nas redes sociais.
Um fenômeno clássico, na acepção
kantiana do termo, é próprio do mundo como nós o experimentamos. A Dilma que
publicamente passou a “experimentar” o Brasil com sua estranha novilíngua era
um fenômeno. Em tese, uma pessoa que pensava o Brasil daquela forma não poderia
comandar o país ─ mas isso não foi detectado na época pela mídia e pela
oposição. Para mim, em particular, ouvir Dilma ─ sim, era eu ─ acabaria se
tornando um hábito. Eu diria: uma obsessão com método.
Nos breves intervalos de minha
atividade jornalística, passei a prestar atenção à agenda da provável
candidata, que àquela altura cruzava o Brasil levando mensagens que não
recomendariam um candidato a vereador em Centro do Guilherme, interior do
Maranhão, onde 95,32% da população vive em extrema pobreza.
Uma porcentagem que equivalia a
seus pensamentos. Como este: “Nós precisamos de uma coisa importante em nosso
país, que é nossa autoestima. Olhar para nós mesmos e sabê (sic) que esse país
conta fundamentalmente conosco.” Nessas pequenas pílulas da Dra. Dilma, estava
a raiz do idioma que dali a meses passaria a governar o Brasil: palavras de um
estrato mais culto, como “autoestima” e “fundamental”, pegando carona num
pensamento indigente, que era a tônica de suas declarações, agravada por uma tendência
a cacoetes de vulgarismo, como corruptelas (você = ocê) e o desprezo ao
infinitivo dos verbos. Não era apenas, contudo, uma questão de gramática, mas
de gestão. “Esse povo que pode e teve (sic) muitas vezes desempregado. Nós não
queremos isso. Nós queremos todos os brasileiros empregados.”
Uma presidente que queria ver
todos os brasileiros empregados, incluindo bebês de colo e pacientes de casas
de repouso, acionaria automaticamente o sinal de alerta, ao estilo Apolo 13:
“Brasília, temos um problema.”
Comecei a despachar esses
“momentos Dilma” a Augusto Nunes, titular absoluto da seleção principal do
jornalismo brasileiro ─ também um cultor da boa língua e um atento crítico da
estupidez política, então assinando uma coluna de enorme repercussão no site da
revista VEJA. Impressionado, ele passou a publicá-los como posts assinados por
mim.
Dilma era um fonte inesgotável.
Com o tempo, não satisfeito em apenas coletar o que os jornais reproduziam,
passei a pesquisar as atuações de Dilma em vídeos e áudios disponibilizados na
internet. Perdi horas destrinchando discursos e entrevistas dela pelos rincões
do Brasil ─ manifestações das quais, imagino, ninguém tomara conhecimento fora
do Palácio. Àquela altura, admito, já havia sido estabelecida minha dependência
mental ao dilmês, pelo que ele tem de mais fascinante: seu poder de empobrecer
qualquer raciocínio.
Minhas breves notas sobre frases
isoladas publicadas na coluna de Augusto Nunes transformaram-se, logo, em
crônicas extensas, nas quais dissecava terríveis discursos e entrevistas dela,
do bom-dia ao até logo. Em janeiro de 2010, o Portal do Planalto facilitou
minha vida. Passou a publicar todos os discursos na íntegra ─ sem correções,
além da eliminação dos vulgarismos. Sopa no mel. O material tornara-se
abundante. E ainda mais convidativo. Eram vários discursos e incontáveis
entrevistas por semana. E, em todos, tomava corpo uma hipótese: a indicação de
Dilma à Presidência fora um grande equívoco. Um erro de pessoa.
Augusto transformou-me num
personagem: o Caçador de Cretinices. O apelido traía um viés de humor ─ quase
sempre involuntários ─ que meus textos incorporavam ao falar de Dilma. Depois,
o titular da coluna também pespegou um apelido em Dilma ─ o Neurônio Solitário.
Enfim, consagrou-se o nome do novo idioma da política brasileira: dilmês. Mas o
humor, nesse caso, ia até certo ponto. Independentemente de suas aparições
desastrosas, ela crescia nas pesquisas.
E, mesmo que no fundo torcesse
para que aquilo fosse adiante, de tempos em tempos, durante o desenrolar da
campanha, eu e Augusto ─ ele, na criação da maioria dos títulos de meus posts e
também em textos próprios ─ passamos a dar um tom um pouco mais austero às
exposições das dimices.
Em 16 de maio de 2010, cinco
meses antes do primeiro turno das eleições presidenciais, a coluna destacava:
“Celso Arnaldo sobre Dilma Rousseff: a desmontagem da farsa exige mais que uma
galhofa.”
Eu resumia: Há oito meses, ouço tudo o que
Dilma diz em público. Não lhe ouvi ainda uma frase inteligente. Um raciocínio
límpido, criativo. Uma tirada esperta. Um jogo de palavras que faça sentido
lógico e tenha algum requinte metafórico. Uma boa ideia própria. Uma resposta
satisfatória e sincera. Um pensamento superior que denote em juízo superior
sobre nossas mazelas e nosso futuro. Um cacoete de estadista. Uma réplica
ferina.
E prossegui: Só construções que não param de
pé, o mais absoluto desconhecimento das leis básicas da argumentação e da
articulação de modernos conceitos de estado. Uma incultura geral inédita entre
pessoas públicas com curso superior. Não consegue reproduzir, sem erros
grosseiros, máximas, ditados e aforismos que já fazem parte da psique popular.
Em Dilma, nada se salva. Não domina nenhum tema, nada lhe é familiar.
Em primeiro de junho de 2010,
Augusto intitulou assim a análise que fiz da participação de Dilma num fórum da
revista Exame em que suas declarações, pela deturpação original, geraram
polêmica: “O caçador de cretinices reconhece: ‘Definitivamente, o dilmês não é
uma língua fácil.’” Falando nesse evento sobre o déficit da Previdência Social,
que nem de longe seria amenizado em seu governo, Dilma afirmou: “Nós temos uma
coisa que é uma vantagem. O tal do bônus demográfico, né, o tal do bônus
demográfico nada mais é que isso: a sua população em idade ativa, idade de
trabalhar, é maior que sua população dependente: o jovem, criança e velho.”
Nesse instante, a reação de Dilma pareceu clara: percebera que o “velho” não
caíra bem. E tentou emendar: “Mais de terceira idade, porque terceira idade tá
ficando difícil, né, gente vai tê (sic) de estendê (sic) ela um pouco mais pra
lá.”
Pânico na época: o “estendê ela”
soou como um anúncio de que os “velhos” teriam de contribuir mais tempo com o
INSS. Parece que não era isso. Foi uma tentativa de chiste de Dilma com sua
própria idade ─ claro que malsucedida. O dilmês não é mesmo uma língua fácil.
Em 9 de julho de 2010, escrevi:
“Quem é incapaz de dizer o que pensa não sabe pensar. Nem pode governar um
país.” O texto abria com a primeira declaração de Dilma ao iniciar sua campanha
paulista na Praça da Sé: “E não podia (sic) estarmos (sic) no melhor lugar. A
poucos metros daqui, São Paulo cumeçô (sic).”
Consagrada no segundo turno, e
após a primeira entrevista de Dilma ao Jornal da Band, publiquei em 5 de
novembro de 2010: “A presidente eleita já não merece a leniência do sarcasmo
que reservamos à candidata.”
Duas semanas depois, em 20 de
novembro de 2010, a coluna retomava o humor, já que agora seriam quatro anos
inevitáveis pela frente. Escrevi: “Dilma é uma fábula criada pela mente
fantasiosa de LuLa Fontaine.” A conclusão do meu comentário parecia muito dura,
mas era o que se avizinhava: “Dilma na Presidência, com essa gravíssima
fragilidade mental, será joguete na mão da petralhada sedenta por mais oito
anos de butim.”
Era a antevisão do predomínio da
má forma de sua fala sobre o previsível conteúdo de seu governo.
Só no terceiro ano de seu
primeiro mandato, a deformidade das ideias de Dilma passou a chamar a atenção
de outras pessoas na rede. Começou por alguns blogs bem-humorados, como o do
jornalista e radialista gaúcho Guilherme Macalossi, de Farroupilha, que criou a
página Dilmês, no Facebook, reproduzindo as grandes gafes de Dilma. Enfim, o
chocante idioma chegou à grande mídia. E em grande estilo: um editorial do
Estado de S.Paulo, publicado em 21 de abril de 2013, com o título de “Dilmês
castiço”. Escreveu o editorialista:
Já se tornou proverbial a
dificuldade que a presidente Dilma Rousseff tem de concatenar ideias, vírgulas
e concordâncias quando discursa de improviso. No entanto, diante da paralisia
do Brasil e da desastrada condução da política econômica, o que antes causaria
somente riso e seria perdoável agora começa a preocupar. O despreparo da
presidente da República, que se manifesta com frases estabanadas e raciocínio
tortuoso, indica tempos muito difíceis pela frente, pois é principalmente dela
que se esperam a inteligência e a habilidade para enfrentar o atual momento do
país. No mais recente atentado à lógica, à história e à língua pátria, ocorrido
no último dia 16/4, Dilma comentava o que seu governo pretende fazer em relação
à inflação e, lá pelas tantas, disparou: “E eu quero adentrar pela questão da
inflação e dizer a vocês que a inflação foi uma conquista desses dez últimos
anos do governo do presidente Lula e do meu governo”.
Encampado, enfim, pela grande
imprensa, o dilmês deixava de ser um dialeto só conhecido dos frequentadores da
coluna de Augusto Nunes para se tornar um “idioma” oficial. O que não quer
dizer que tenha se enquadrado nos cânones da boa língua.
No dia 24 de setembro de 2015,
quase cinco anos depois do triunfo nas urnas da fábula de LuLa Fontaine, Dilma
Rousseff embarcou para Nova York. Pela quarta vez, abriria a Assembleia Geral
da ONU, prerrogativa de um dirigente brasileiro desde 1948. Na decolagem do
helicóptero presidencial do Palácio do Planalto para o hangar do Aerodilma no
aeroporto de Brasília, câmaras que documentavam a partida registraram um
princípio de incêndio numa das turbinas da aeronave. As chamas se apagaram em
segundos e o helicóptero decolou, sem problemas. Foi um fogo assustador, embora
fugaz, visto à noite por todo o Brasil nos jornais da TV.
Já em Nova York, uma sorridente
Dilma chegava a seu hotel quando os repórteres quiseram saber se o susto fora
grande. Ela não sabia de nada: “No meu helicóptero? Não. Hoje?”
Parecia não saber mesmo ─ melhor
para Dilma, poupada do risco. Mas essa negativa da presidente, embora tenha
causado alguma perplexidade, já que o Brasil inteiro vira a labareda, fugia à
regra: não havia nela, surpreendentemente, um elemento, um toque de dilmês. É
que a resposta não continha maiores problemas de sintaxe, nenhuma
estranhamento. Mas, espere: nunca confie no dilmês, como o dilmês não confia no
sujeito ─ como se verá ao longo destas páginas. O fecho da resposta de Dilma,
esse sim, é dilmês puro. Antes de entrar no hotel e sair da visão dos
jornalistas, culminou sua microentrevista com uma frase de três palavras, sendo
duas iguais, embora com sentidos semânticos totalmente diferentes, e uma
vírgula entre elas: “Ninguém viu, viu?”
Um exemplo do espírito mais puro
e castiço do dilmês que inspirou este livro.
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